segunda-feira, 14 de abril de 2008


O mendigo e o tesouro



Pode até parecer inusitado, mas tenho que confessar que trago comigo um costume antigo: "catar coisas da rua e levar pra casa". Uma espécie de passeio por uma feira livre, preenchida por ricas variedades.

O caminho que me leva e traz nunca é o mesmo. E, pode acreditar, já experimentei todos os possíveis, por muitas vezes. Mas, em todas os casos, sempre uma nova possibilidade. A paisagem muda. Os rostos mudam. As pessoas mudam. A vida muda. Do jeitinho que *Heráclito imaginou.


Do outro lado da janela (ou do caminho), o que foi, na ida, não será na volta, possivelmente. Os garotos do sinal e suas constantes performances. A cadela do ponto do ônibus, com cara de súplica pelos filhotes à míngua.

O pregador da praça do relógio, de terno de listras e rosto suado (tomando uma dose no bar do cravinho). As alegres garotas de programa, de virote, reunidas para o merecido 'café dos justos', no Suco 24h.


Todas essas imagens, mesmo as que sugerem aparente rotina, sempre se renovam. Até mesmo aquelas duas senhoras do R1, por exemplo, com diálogos forçosamente partilhados, modelitos inenarráveis, risadas escandalosas e perfumes sufocantemente perceptíveis. Até elas, que pareciam mais que amigas, hoje, nem ao menos se olham mais. Disso tudo em movimento, levo um pouco.


E, assim sendo, tornou-se impossível ser só com um pouco dos outros em mim.
Mas, existem também aqueles que se apressam em fazer mudanças estéticas nos becos, praças e ruas. Ah, esses são os meus preferidos! Eles se enchem de força e dedicação, faça chuva ou faça sol, para deixar a velha urbe menos chata e rotineira.


Confesso que chego a perder bons minutos olhando esses personagens da rua e suas refinadas seduções. Olho tudo com cuidado. As pessoas chegam, aos poucos. Amontoam-se, sequiosas, em nome da quebra de rotina. Em alguns segundos, todos aos pés de mais uma intervenção. Um oásis encravado no meio da avenida. Dali, discretamente, eu também levo coisas. Cato o que preciso, não mais que isso.

Posso afirmar, ainda, que conheço pessoas que saem de casa exclusivamente para encontrar esses pequenos shows de logradouros. Conheço alguns que se arrumam caprichosamente para isso. Escolhem roupas, arrumam o cabelo e saem para encontrar o que se poderia chamar de 'inclusão cultural' no meio da praça. Curioso!


"É só assim que eu consigo distrair a mente sem gastar dinheiro. Venho aqui andando e ainda vou 'na' missa, depois. Tudo de graça. Quando muito, 10 centavos". Lembro, também, que, na última semana, outro amigo fez um apelo: "me ajudem a encontrar a garota estátua".

*Heráclito é considerado por mitos o mais eminente pensador pré-socrático, por formular com vigor o problema da unidade permanente do ser diante da pluralidade e mutabilidade das coisas, particulares e transitórias.

Ele se apaixonara por uma artista que fazia estátua viva. Tão "viva" que era, derrubou o frágil coração, "quase morto", do músico. Desde então, me juntei nesta busca, na esperança de amenizar os entraves de um romance que nasceu, assim, sem pretensão, ao ar livre.


Até o momento, parcas lembranças, acanhadas pistas e duvidosas fotos do Orkut. Disso eu também me alimento, tiro uns tequinhos e carrego junto.
Outro caso, não menos estimulante, me trouxe "pano pras mangas". Um morador resolveu escrever nos muros da comunidade. A rua carimbada com os sentimentos de um personagem que cansou de ser anônimo.

A cada passo, uma mensagem. Em cada olhar, uma opinião. "Desliguem o rádio e a TV", dizia uma frase, próximo a um velho telefone azul, riscado com anúncios de quentinha. "Converse com o semelhante. Crie opinião", continuava a elocução. Ao ler tal imperativo, me apressei em desligar o fone de ouvido, interrompendo Pearl Jam. Comecei a buscar as pessoas.


Os registros, alguns angustiados, passavam, ao mesmo tempo, esperança. O poeta dos muros, que usava tinta no lugar da pena, cansou de tentar entrar no circuito cultural oficial da cidade. Seu olhar dava volta ao mundo, mas voltava sempre para a mesma rua estreita do bairro, cheia de curvas e buracos.


- Você não acha que deu uma vida? Perguntou-me, referindo-se aos escritos do muro.
- Sim, deu. Deu a sua! Respondi, frente a um trabalho tão significativo.


Dessa história, eu também catei muitas coisas. Na verdade, ando catando muito desses episódios, silenciosamente. Sei que parte de mim se faz dessas marcas. Sei também que são raras. De todas, as mais especiais, as que falam destes artistas. Uma rotina voltada para o "belo", esquecido, no meio do caminho.


Sei que a mesma rua, que acolhe e agride, serve como palco para muitos destes fabricantes de sonhos e esperanças. Eu, divagando; a cadela desolada, o pregador da praça, as garotas de programa, as mulheres do buzú e os artistas. Estes, por conseguinte, são os responsáveis por criar, no mesmo caminho, várias possibilidades de leitura.
Catando coisas, continuo a caminhar, silenciosamente. Levo o meu caminho. Alimento uma necessidade de querer ver, muito mais, daquilo que, em geral, é menos visto. Quebremos as molduras! Vamos dar um passeio?


Marcio Luppi